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A Joia do Reino - Parte II - Castigos
& Ladrões
Aquele
belo dia ensolarado logo se transformou numa noite agradável, refrescada pela
brisa que entrecortava as torres e prédios da academia. Sobre a biblioteca, o
céu repleto de estrelas não dava mais sinal da fumaça de mais cedo. A única
prova que ainda resistia da algazarra era o cheiro de queimado, resultado da
queima de volumes mágicos de valores quase inestimáveis.
E,
sentada já a algumas horas na sala do reitor, Vicky aguardava o que esperava
ser o maior castigo da história da academia.
Ou
do reino.
Era
uma especialista em castigos, diga-se de passagem. Muitos alunos diziam pelos
corredores que não haveria mudança da lua se Victorya não aprontasse e pagasse
o preço.
O
problema, e a maga estava consciente disto, era que ninguém nunca havia sido
mandado diretamente ao reitor. Pelos menos nunca ouvira falar de tal medida
corretiva.
Esperava
por uma expulsão. Seria a única dos últimos cinquenta anos, e entraria para o painel da vergonha no salão principal ao lado de Angarion, o Idiota, que acreditava
cegamente que poderia usar magia de cura à distância por meio de flechas
encantadas.
Sacudiu
a cabeça e afastou tal pensamento. Sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha.
Em parte por medo. Em parte por ainda estar com as vestes molhadas, resultado
do feitiço da bibliotecária.
Seria
fácil secar-se. Bastava conjurar seu cajado, dizer algumas palavras e pronto:
roupas secas. Mas segurou-se. Temia que algo ainda pudesse dar errado. Havia
uma lei metamágica que dizia que tudo sempre poderia piorar, independente da
perícia ou grau de poder bruto envolvido.
Respirou
fundo. Parecia estar ali sentada há dias. O escritório do reitor era amplo e
bem iluminado, e insuportavelmente bem
organizado e alinhado, dando a impressão de que, se algo fosse tirado do lugar,
ganharia vida e atacaria.
A
porta se abriu, despertando-a de seus devaneios.
Era
o reitor. Um mago velho e esquelético, sem barba ou qualquer outro tipo de pelo
na cabeça, com um pescoço longo se projetando para fora do robe, dando-lhe o
aspecto de uma tartaruga velha e sábia.
Trazia
nas mãos um rolo de pergaminho encardido. Estudou-a por um longo momento antes
de começar a falar:
–
Boa noite, criança. – Desenrolou o documento e deu uma espiada. – Victorya,
certo.
–
Boa noite, s-senhor. – A voz não saiu com décima parte do efeito que desejara.
Soara como se estivesse à beira do precipício, a um sopro da queda que seria a
última.
–
Deixa-me ver. – O velho andou arte sua mesa e sentou-se, terminando de
desenrolar os documentos que trazia. – Está bem, vejamos... – Corria os olhos
esbugalhados pelos papéis, e Vicky teve a impressão de que se divertia. –
Hum... Ahãm... Ah!
Conhecia
a reputação do reitor. Era um conhecido herói do reino. Atualmente aposentado
da vida de aventuras, dividia seu tempo entre gerenciar a academia e aconselhar
o rei.
No
entanto, parecia uma figura meio patética. E este era o erro que noventa e nove
a cada cem pessoas que o conhecia cometiam: julgá-lo tolo e senil.
–
Agora, - Enrolou de volta o pergaminho. – Quero saber de você, Victorya, o que
realmente aconteceu à tarde?
– Eu
estava encarregada de guardar alguns livros. – Começou, sentindo a vergonha
tomar conta conforme avançava. Olhava para o chão. – Me distraí e deixei um
cair. Era o Bestiário de Alkalor, mestre. Então...
–
Então já podemos começar agradecendo aos deuses pela nossa sorte. – Cortou-a. –
Formigas atrozes são uma praga, mas
se fossem aranhas d’último sono estaríamos
agora com problemas para nos livrarmos dos corpos.
–
Desculpe, mestre.
–
Não se desculpe, pelo menos para mim. – Respirou fundo. – Mas receio que jamais
será permitido que você entre na biblioteca enquanto madame Lenora for
bibliotecária. Continue:
–
Quando as formigas estavam tomando conta, resolvi conjurar fogo para lidar com
elas. – Sentiu o rosto enrubescer. Na hora parecera uma boa ideia, mas agora a
fazia se sentir envergonhada. – Sei que foi uma tolice.
–
Diria que a maior tolice desde as flechas curadoras de Angarion, o Idiota. -
Falou
aquilo de maneira cruel, para o desespero da garota. – Sinceramente, havia
volumes naquela biblioteca que não poderiam ser encontrados em nenhum outro
lugar do mundo. Livros tão raros e poderosos que reis entregariam suas coroas
para tê-los em seu poder.
Fez
uma pausa e tomou um pouco de ar. Depois continuou.
– O
que aconteceu hoje aqui foi grave, Victorya. Quero que entenda isso. Nossa
academia tem sido a mais respeitada de todo o continente desde a sua criação. E
tínhamos a maior biblioteca.
– Eu
sei, senhor. – Vicky concluiu, ainda de cabeça baixa. – Aceitarei a expulsão,
mestre.
O
reitor a estudou por um longo momento, depois concluiu:
–
Não vou expulsá-la. – Apontou para o pergaminho. – Li aqui que suas notas são
excelentes, e que é a melhor da classe em diversas disciplinas. É uma
encrenqueira de primeira, senhorita Victorya, e um tanto cabeça de vento, mas
acredito que com o direcionamento certo posso colocá-la na linha.
Não
conseguia acreditar. Tomara a expulsão como certa.
–
Conjure seu cajado. – Disse-lhe o mestre.
Com
um estalar de dedos, Vicky fez o que lhe foi ordenado.
–
Agora trate de secar essas roupas.
– Poderes ocultos adormecidos e enterrados. – Entoou
a garota. – Resolvam este meu problema
dos trajes molhados!
E as
vestes secaram.
– Magia
das palavras. – O reitor sorriu de leve. – Isso é raro. Parabéns.
–
Obrigado, senhor.
–
Agora, seu castigo. – E estalou os dedos. O cajado de Vicky rachou e se
despedaçou em mil pedaços e lascas. – Continue acompanhando as aulas, mas com
suas capacidades drasticamente reduzidas.
Era
um pesadelo. Vicky ainda precisava do cajado para fazer magias mais poderosas
do que acender uma vela, por exemplo. Não conseguiria créditos práticos, o que
atrasaria seus estudos.
–
Por quanto tempo, senhor?
–
Até eu julgar que você o merecerá de volta. – Sorriu. – Agora vá dormir. Amanhã
você tem aula cedo.
***
Do
lado de fora da academia, a cidade dormia. Na
verdade, apenas parte da cidade dormia. A parte formada pelos trabalhadores
honestos que, ao final de suas jornadas diárias, pensavam apenas no jantar e na
cama, independente se a cama fosse de palha ou possuísse o mais caro dos
colchões (embora, geralmente nos casos
citados, camas simples de palha eram muito mais comuns...).
De
forma que para aqueles envolvidos em negócios obscuros, a noite era uma
criança.
Sendo
assim, duas sombras esgueiravam-se pela cidade meio adormecida. Uma das sombras era esguia, em contraste da sua
companheira, mais rechonchuda e com orelhas compridas.
Moviam-se
como se fossem os donos da noite. E de fato eram.
Sombras,
com um trabalho a fazer.
Pararam
sob o muro da ala leste da academia.
–
Chegamos. – Disse Izel, o mais magro dentre os ladrões. Ergueu a cabeça para
inspecionar a altura do muro, fazendo seu capuz negro cair para trás. Se
houvesse mais alguém presente além do companheiro, veria um rapaz jovem com
cabelos escuros macilentos e desgrenhados, tão rebeldes que pareciam prestes a
morder quem se aproximasse. – Não é tão alto quanto eu pensava. Dê-me a corda.
Niko,
o homem coelho, remexeu na bolsa que trazia à tiracolo. Não usava capuz, pois
as compridas orelhas não permitiam. De qualquer forma, possuía pelos tão negros
quanto as vestes de ladrão, e tinha um talento nato para a furtividade, apesar
dos quilinhos extras.
– Temos um problema. – O homem coelho retirou
uma trouxa de dentro da bolsa. – Isto está com um cheiro horrível.
Jogou
no chão o que se revelou como vestes de ladrão imundas.
– E
tem mais. – Havia mais três peças, agora espalhadas aos pés de Izel. – Você não
lava suas roupas na guilda?
O
rapaz suspirou. Havia pegado a bolsa errada de
novo.
–
São as roupas do último roubo. – Disse, sentindo as forças se esvaindo. – E do
penúltimo.
Imaginem
a surpresa na guilda dos ladrões quando, na manhã seguinte, a lavadeira abrir uma
bolsa cheia de cordas e ganchos e facas e grampos e bombas de fumaça...
Abaixou-se
e começou a juntar as vestes imundas. Começou a amarrá-las umas às outras: Uma
perna numa manga noutra perna num manto e
assim por diante.
–
Isso é o que estou pensando? – Nico franziu o cenho. – Sei que as vestes são
resistentes, mas...
– É
o que temos. É isso ou voltar para casa.
–
Então amarre bem isso aí. – O homem coelho revirou os olhos. – Sabe que não
posso voltar de mãos vazias. Tenho doze bocas para alimentar em casa.
Riram.
Izel conhecia a família de Nico. A esposa e os onze filhotes, em suas
diferentes fases de crescimento e níveis de conhecimento em artimanhas.
Não se pode confiar em coelhos, ouvira
isso a vida toda.
Mas
confiava em Nico, um coelho e um ladrão.
Um
amigo.
–
Não temos um gancho. – Disse, depois de avaliar pela terceira vez todos os nós.
– Vou ter de escalar o muro, no fim das contas. Lá em cima, dou um jeito de
prender pra você subir.
Nico
deu de ombros. Não havia outra forma.
Se
conseguissem finalizar o roubo com sucesso, o pagamento seria o suficiente para
viver confortavelmente por quatro longos meses. Além da fama e do prestígio
dentro da guilda.
Havia
um pequeno detalhe: ninguém antes roubara a academia de magos. De todos os que
tentaram, poucos conseguiram deixar os calabouços do rei.
E
havia ainda outro detalhe, e o
cliente fora bem específico quanto ao item em questão...
A joia
do reino, o tesouro máximo das lendas e canções, de um extremo poder mágico,
seja lá o que isso queira dizer.
Para
Izel, era o desafio dos desafios.
Sorriu.
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