Saudações, aprendizes! Este é o segundo post de série A queda de Arcádia.
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Sonhou com uma donzela sardenta, de cabelos ruivos trançados até a cintura. Do alto da torre ela chamava seu nome, e ele, em sua juventude restaurada, corria pelas escadas de espada na mão derrubando um a um aqueles que se opunham ao seu amor. Já perdera o elmo e o escudo, e sangrava de diversos pontos sob a armadura esfarrapada, mas continuava. Cada vez mais forte e cheio de vontade, pois cada degrau para cima o levava para mais perto dela, e sabia que ela esperava por ele.
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1 - O despertar de Rastler de Rasíris
Sonhou com uma donzela sardenta, de cabelos ruivos trançados até a cintura. Do alto da torre ela chamava seu nome, e ele, em sua juventude restaurada, corria pelas escadas de espada na mão derrubando um a um aqueles que se opunham ao seu amor. Já perdera o elmo e o escudo, e sangrava de diversos pontos sob a armadura esfarrapada, mas continuava. Cada vez mais forte e cheio de vontade, pois cada degrau para cima o levava para mais perto dela, e sabia que ela esperava por ele.
- Jeren... -
Disse, quando enfim cruzou a porta para a última sala, onde ela esperava-o,
linda em um vestido azul. Sorriu ao vê-la, e correu para abraçá-la, beijá-la e
amá-la.
Mas ele
estava ali também, em sua armadura de aço negro. Uma espada longa na mão. O
último oponente, e ela enfim poderia ser sua.
último oponente, e ela enfim poderia ser sua.
Apertou a mão
no cabo da espada e avançou contra o inimigo, que se mostrou um lutador feroz,
mas insuficiente. Derrubou-o e apunhalou-o uma dezena de vezes, até que seu
braço não aguentasse mais o peso da espada.
- Mas... O
que foi que eu fiz? - Disse de repente, quando a lâmina do arrependimento
trespassou-lhe o coração. Chorando, ajoelhou-se sobre o oponente caído e
tirou-lhe o elmo negro, revelando um jovem pálido de longos cabelos negros.
Seus olhos olhavam-no sem vida, e um filete de sangue escorrera por sua boca. -
Eu nunca... Ela deveria ser minha... Minha... Não... Lucian, por favor...
Não... Não!
Rastler de
Rasíris acordou de um salto, encharcado pelo próprio suor. Foi um sonho, só
isso. Fechou os olhos e levou as mãos ao rosto. Rastler, seu maldito.
Esqueça-a. Levantou da cama e andou até a mesa no centro do quarto, onde a
taça e meia garrafa de vinho da noite anterior ainda o aguardavam. Vinho, é
isso. Nada melhor que um pouco para afogar sonhos ruins. Deu um tapa na
taça, fazendo-a cair e estilhaçar-se no chão. Bebeu direto da garrafa. Droga.
Nem todas as garrafas do mundo me farão esquecê-la. Jogou a garrafa
contra a parede, quebrando-a também. Esqueça-a. Ela não lhe pertence. Nunca
pertenceu.
Colocou o
manto e saiu para a sacada. Lorde Orion lhe alojara num quarto de hóspedes na
ala norte da Ilhota dos ventos, e da sacada podia ver da margem norte do rio
até a mata e o sopé das montanhas a nordeste, o caminho para Granlago. Lá
embaixo, o movimento era intenso. O sol aparecia tímido do leste, e as tropas
negras cruzavam a ponte e entravam na Ilhota pacificamente. Isso é bom. Três
castelos, nenhuma morte.
Franziu o
cenho, a conta não estava certa. Três mortes, na verdade, Ricardus Tormen e
os dois tolos que o defendiam. Ainda não deixam de ser bons números.
Vestiu-se e deixou o quarto.
Rex estava do
lado de fora da porta, montando guarda.
- Com sono,
soldado? - O homem vermelho era seu melhor lutador. Um amigo. Rastler
conhecera Merax há quase quinze anos, na vastidão vermelha e escaldante das
terras do além leste. Não havia homem que igualasse as habilidades de combate
do povo vermelho. Por sua ferocidade, foi apelidado Rex, como as feras que
rondam sua região natal: lagartos bípedes ferozes e sanguinários que devoram
viajantes desavisados. E tolos avisados também. - Problemas?
- Ninguém
tentou passar por mim.
- Meu primo
já cruzou a ponte?
- Já. Os
comandantes das tropas negras foram os primeiros a atravessar. Esperam pelo
senhor no salão principal.
- E quanto ao Ron? – Perguntou Rastler, olhando ao redor e sentindo falta de um dos seus
guerreiros.
- Eu o
liberei no meio da noite. Um guerreiro distraído não desempenha bem o seu
papel.
- Eu entendo.
- Ron deve ter ido até a cidade procurar mulheres. E deve ter torrado a
paciência de Rex até que o liberasse. Obrigou-se a sorrir. - Tudo bem, Rex.
Sei que você seria o suficiente. Está dispensado. Entre no quarto e durma.
- Não gosto
dessa cidade. Muitos falsos amigos.
- Não
passaremos de hoje, eu prometo. Descanse, estará seguro aqui. artiremos ao pôr do sol.
- Não dormirei aqui. Prefiro dormir no acampamento.
- Como
queira. – Rastler ordenara que sua companhia permanecesse ao norte do rio.
Tomaria a Ilhota, e apenas isso. O resto deixaria com o príncipe. - Então venha
comigo até o salão.
O guerreiro
assentiu. Os dois desceram pelas escadas, passando por um ou outro criado, que
se assustavam à simples visão do homem vermelho. Pertencem a mundos
diferentes. Ele jamais será aceito nessas terras, assim como jamais aceitará
nossos costumes. Rex sempre fora silencioso, nunca puxando assunto. Fora o
seu primeiro companheiro no exílio, e era seu melhor soldado dentre os seus
duzentos Bastardos Sangrentos.
O grande
salão estava lotado. Mesas haviam sido postas e criados andavam para lá e para
cá com a refeição matinal dos nobres. Lorde Orion ocupava o lugar principal,
como era próprio de sua senhoria. Lorde Anton estava ao seu lado direito, e
depois dele os filhos Sir Jonas e Sir Jan. Tipos interessantes esses aí.
Conquistara Sir Jan pela amizade, após a batalha de Granlago. Libertara-o e
mostrara tudo o que Arcádia poderia fazer pelo povo do rio. E claro: oferecera
para ele uma senhoria, a fortaleza da Margem de Sangue. Seu irmão Jonas parecia
um pouco mais rebelde, mas acabara dobrando o joelho também, assim como o tio
Orion. O pai deles, no entanto... Lorde Anton Granrios foi o último grande
senhor a prestar juramento à Arcádia, mas mesmo assim podia-se ver claramente
sua má vontade. Mais tarde naquele mesmo dia, o mago conselheiro, Droclau,
incitara uma pequena rebelião, que rapidamente foi contida por sir Jan e a
guarda do castelo. Rastler deitou-se à noite para dormir indagando se lorde
Anton não teria incitado o mago a rebelar-se. Pare com isso, Rastler, seu
idiota. É muito cedo para julgar a lealdade deles.
O Príncipe Negro
encontrava-se ali também. Lucian, o filho mais velho do Rei Teobald de Rasíris.
Não era o herdeiro do trono de Arcádia, pois era de nascimento ilegítimo. Um
maldito bastardo, mas com toda a pompa real. Vestia sua armadura de aço negro
quase que completa, apenas sem o elmo. Sua pele era branca, e os cabelos longos
e negros. Parecia mais jovem do que realmente era, e sua aparência parecia um
tanto delicada. Mas já passara dos trinta anos. Sentava-se ao lado esquerdo do
anfitrião, com seus principais comandantes também à mesa. Rastler os conhecia
bem: tanto jovens cavaleiros e herdeiros das famílias mais importantes de
Arcádia, como também velhos cavaleiros, cujos feitos já haviam se tornado
lendas.
- Senhor... -
Rastler fez uma curta reverência. - Agrada-me vê-lo deste lado do rio.
- Rastler,
seu maldito bastardo. Você conseguiu. - Lucian deu um breve sorriso. Indicou um
lugar à mesa principal. - Sente-se. Temos muito e ainda mais para tratar.
- Como
desejar, senhor. - Rastler sentou-se, com Rex ao seu lado. O homem vermelho não
era bem visto nem mesmo dentre as tropas negras, mas isso não parecia importar.
Rex começou a comer e beber sem cerimônia. - O que acha da Ilhota dos Ventos?
- Um lugar
agradável. - O príncipe negro olhou de relance para seu anfitrião. - Lorde
Orion me deixou a par dos acontecimentos de ontem à tarde.
Claro, a pequena rebelião dos magos.
Mestre Droclau e dezesseis jovens aprendizes foram jogados no calabouço.
Ninguém foi morto, e todos aguardam julgamento.
- Uma
tentativa vã de resistência, se me permite dizer. - Pegou uma taça de vinho e
bebeu um longo gole. - Esperam pela justiça do Rei.
- Erro seu,
Rastler. - Lucian soou severo. Você é previsível, caro primo. No meu lugar
teria jogado todos na fogueira, não é? Seu maldito sádico.
- Discordo,
meu senhor... - A tensão caiu sobre a mesa. Não era comum alguém confrontar
Lucian, o Negro, dessa forma. Qualquer um dos outros senhores presentes teria
admitido o erro, mas não o capitão dos Bastardos Sangrentos. - Dei a eles a
chance de fugirem, e não me arrependo.
- Segure sua
língua imunda na presença do príncipe, Rastler. - Lorde Leonard Mardul chamou
sua atenção. Com seus longos cabelos cor de fogo, o senhor de Lago Mardul era
um dos favoritos de Lucian.- Por acaso esqueceu-se de que qualquer tipo de
magia é proibido em Arcádia?
Foda-se, palhaço. Você não seria nada
sem o nome de seu pai. Sorriu e depois disse:
- Não me
esqueci das leis do Rei, Mardul. Hoje a Ilhota pertence à Arcádia, mas ontem
não pertencia. Mostrei piedade a eles, dando-lhes a chance de fugir. Mostrei
aos senhores do rio que nossa causa é justa e clemente. E como disse antes, não
me arrependo do que fiz.
- Palavras
sábias, meu primo. - O tom de Lucian mantinha a seriedade. - Agora entendo seu
ponto de vista.
- Mesmo
assim, não foi capaz de poupar Lorde Ricardus Tormen? - A pergunta agora vinha
no tom acusador de Sir Dante de Karanus, outro dos favoritos do primo. Um pouco
acima do peso, o jovem herdeiro da Vigia de Karan parecia um touro em armadura
negra. - Seria um precioso refém se o tivéssemos vivo.
- Ricardus
Tormen não aceitou a paz do Rei. - Era só o que me faltava. Lutei batalhas
por todo o continente como líder mercenário, e agora cá estou, tendo de dar
explicações para nobrezinhos de ego empinado. - A única solução que
encontrei para ele foi a morte. Se errei ou não nesta questão, cabe a Lucian
decidir.
- Se me
permite dizer, senhor... - Sir Jan Granrios entrou na conversa, intercedendo
por Rastler: - Ele não teve escolha, foi Lorde Ricardus quem o atacou.
- Isso é
verdade, Lorde Orion? - Perguntou o príncipe negro.
- Sim. - O
anfitrião, que ocupava-se com um belo e generoso pedaço de carne, limpou a boca
antes de responder. Ao seu lado seu irmão comia sem se fazer notar. Lorde
Anton não aceitou a paz do Rei. Dobrou o joelho, mas por quanto tempo? Seu
rosto transbordava de insatisfação. - Ao ver que seus termos eram bons e que
não poderíamos recusar, ele tentou resolver isso com as próprias mãos.
- Uma jogada
ousada, a dele. - Agora era Sir Jonas quem falava. Esse aí fala o que pensa,
e não parece ter medo das conseqüências disso. Rastler sempre admirava tais
ações. Aqueles que nos dizem a verdade, por pior que seja, são nossos homens
mais leais. Aqueles que omitem e amenizam os fatos estão mais propensos à
traição. Essa, na opinião de Rastler, era uma verdade incondicional. - Se
Ricardus Tormen tivesse matado Rastler, nossa chance de trégua cairia por
terra. Seríamos obrigados a lutar e perder. E não estaríamos aqui agora.
- Você fez
bem, Rastler. - Lucian deu um breve sorriso. - Tenho certeza de que meu pai o
recompensará bem pelos seus serviços.
- Me
lisonjeia, senhor, mas não pretendo ir à capital tão cedo. - Voltar à Pedra das
Estrelas representava muitos reencontros indesejados.
- Não
pretende, mas vai. - Lucian pegou um pergaminho que estava enrolado sobre a
mesa e alcançou ao primo. - Isto chegou ontem. Leia.
Desenrolou o
pergaminho e a primeira coisa que notou foi o selo real: um castelo rodeado por
estrelas. Estava escrito:
A Lucian, o príncipe negro de Arcádia, Senhor comandante das
Tropas Negras
Caro Lucian, a hora chegou. Depois de
cinqüenta anos, trinta e três dos quais como Rei de Arcádia, é tempo de passar
a coroa adiante. A Doença fez de mim menos da metade do que já fui um dia, e
temo não suportar mais por muito tempo. Por isso, para celebrar meu
qüinquagésimo aniversário, será feito um enorme festival em Pedra das Estrelas,
e a presença de todos os meus filhos, netos, irmãos e demais parentes é
fundamental e muito importante. Todos os castelos devem enviar um
representante, sejam senhores ou herdeiros. Haverão festins, jogos e banquetes,
e no final um novo rei será coroado. Espero pela sua presença, meu amado filho.
Rei Teobald de Rasíris I, Senhor de Pedra das Estrelas e Rei de
Arcádia.
Rastler
terminou de ler apenas para recomeçar. De novo e de novo. Então teremos um
novo Rei em Arcádia. Conhecia a atual situação do tio: Sem poder andar, e
em eterno luto pela sua rainha. Ouvira rumores de que os órgãos estavam lhe
falhando. Com toda certeza merece um descanso, e Ricard está mais do que
apto para governar em seu lugar. O primogênito do rei já tinha vinte e nove
anos, três filhos e incontáveis vitórias em batalha. E ainda por cima era amado
pelo povo. E terá o irmão para auxiliá-lo.
- Festins e
torneios não combinam comigo. - Falou ao devolver o pergaminho. - E, além
disso, precisa de homens aqui.
- As tropas
negras ficarão. Deixarei homens competentes no comando. Você vai.
E assim foi.
Partiram da Ilhota naquela tarde, após Lucian dividir suas tropas em três: uma
parte em Granrio, outra em Águas Escuras e outra na Ilhota dos Ventos. Deixou
generais veteranos no comando, homens duros pela vida no campo de batalha.
Levou consigo todos os herdeiros importantes. Sua turminha de cavaleiros
negros. Rastler ia à frente, com Ron, Rex e Sir Jonas ao seu lado. Logo
atrás vinha o príncipe negro, acompanhado por Sir Sigfried Travel, seu braço
direito, e Sir Jan Granrios. Depois uma comitiva formada por Lode Olaf, Lorde
Anton e uma dúzia de cavaleiros das terras do rio. Logo atrás deles vinham os
escudeiros. A retaguarda ficou à cargo de Sir Dante de Karan, com mais duas
dezenas de cavaleiros. Bela sacada, primo. Tirou os Granrios de seus
castelos e os leva para a capital. Os senhores menores do rio jamais se
rebelariam enquanto seu suserano fosse nosso refém.
Lucian queria fazer a viagem em menos tempo
possível, e com isso cortou toda a bagagem extra. Seriam hóspedes em castros e
fortalezas que encontrassem pelo caminho e cavalgariam dia após dia.
Mas primeiro
passariam pelo acampamento dos Bastardos Sangrentos. Minha própria turminha.
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