Saudações, aprendizes. Neste post, mais um capítulo do projeto A queda de Arcádia.
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A guerreira rúnica
Cetro Real era, talvez, a cidade mais
bela do mundo humano conhecido. Suas seis torres erguiam-se
altas e poderosas como se lanças gigantes estivessem apontadas para o céu. Cada
uma dessas torres representava uma das seis essências arcanas estudados pelos
magos: fogo, água, ar, terra, luz e trevas. No centro da cidade, o palácio
branco era o pináculo daquela civilização, tendo sido a casa dos reis de Arkana
por milhares de anos.
Mas
toda aquela beleza parecia não atingir Agria naquele dia. Entrou na cidade à
galope acelerado, ansiosa pela audiência com o rei. Arturo Benferd III era o
rei de Arkana já havia dezessete anos. Como príncipe, fora um destemido
cavaleiro rúnico. Aos trinta e dois, seu conhecimento sobre as artes arcanas o
tornava o rei mais respeitado em dez gerações, era o que o pai constantemente
lhe dizia.
Mas seu pai estava morto, assassinado pelos nortenhos. Como poderia isso ser possível? Lorde Ricardus era um poderoso cavaleiro rúnico, e por anos fora a primeira espada de Arturo Benfred II, o pai do atual rei. A mensagem que recebera no acampamento dizia pouco e ainda menos. E Agria estava ansiosa por respostas.
Desceu
do cavalo em frente aos portões de mármore do palácio branco. Andava tão
depressa que sua capa esvoaçava às suas costas. Muitos a cumprimentavam
discretamente enquanto passava. Outros baixavam a cabeça. Tudo em respeito ao
primeiro conselheiro.
O
grande salão estava vazio, a não ser pelos criados que se ocupavam com suas
tarefas matinais, além de alguns guardas. Agria conhecia bem aquele castelo.
Por detrás do trono estava a porta para a sala de reuniões do rei. Inúmeras
vezes durante a infância acompanhou seu pai por através daquela porta.
Morto.
Deteve-se
por um momento em frente ao trono, tão vazio quanto sua alma. Estar ali fazia-a
sentir novamente seus dez anos, vendo seu pai ao lado do rei, aconselhando-o
como sempre fazia tão bem. Ricardus Tormen fora alto conselheiro durante todo o
reinado do rei Benfred III. Era comum Agria ouvir dizer que muitas vezes era seu
pai quem governava. Na juventude, sentia-se orgulhosa de tal comentário.
Mas
hoje, sabia que tais palavras saíam principalmente da boca daqueles que não
nutriam o respeito e o amor ao qual Arturo Benfred III merecia.
-
Sabe, por vezes acho que tudo não passa de uma brincadeira. - Uma voz ao seu
lado a fez despertar de seus devaneios. - Todos os dias esperei que ele
entrasse pelas portas do grande salão. Até que fui obrigado a acreditar.
Agria
virou para o rapaz ao seu lado. De baixa estatura, com não mais do que
dezesseis anos. As vestes brancas indicavam um cavaleiro rúnico. Os cabelos
estavam escondidos sob o capuz, e tudo o que Agria podia ver eram os olhos azul
claros do garoto.
Azul
claros como os do rei.
-
Príncipe Marion. - Agria caiu sobre um joelho. Certamente o príncipe estava
maior desde a última vez que o vira, mas não havia erro. Marion Benfred era o
segundo filho do rei, três anos mais jovem do que seu irmão e herdeiro do trono
Julius. - É uma honra encontrá-lo, alteza.
-
Por favor, lady Agria, de pé. - O jovem estendeu a mão para que pegasse e se
erguesse, e assim Agria o fez. - Sinto pela sua perda, minha senhora. Ele fará
uma imensa falta para todos nós.
-
Obrigado, alteza.
-
Meu pai está na sala de reuniões, minha senhora. - Estendeu-lhe novamente a
mão. - Se me der a honra.
Ao
lado do príncipe, Agria deu às costas ao trono vazio e juntos caminharam ao
encontro do rei.
Arturo
Benfred III estava em sua sala de reuniões, sentado numa cadeira de espaldar
alto em frente à lareira, comtemplando as chamas. Embora com meros trinta e
quatro anos, aparentava muito mais idade. Os cabelos louros começavam a
branquear, e sua postura cada vez mais curvada pelo peso da coroa de ouro
cravejada de diamantes que ostentava sobre a cabeça. Trajava um fino manto
branco com runas douradas inscritas nas dobras das mangas.
-
Vossa graça. - Agria fez sua reverência, e esperou pelo comando de seu rei.
-
Minha querida senhorita Agria Tormen. - O rei levantou-se de sua cadeira e
andou até a recém chegada. - Levante-se, senhorita, para que eu possa
abraçá-la.
Agria
ergueu-se e recebeu o abraço acolhedor do rei. Vira-o há menos de dois meses,
antes de partir para dar batalha aos magos rebeldes de Mor Krazt. Estranho
pensar que envelhecera tanto em tão pouco tempo.
-
Sente-se, lady Agria. - O rei indicou outra cadeira próxima a que estava. -
Sente-se e fique confortável, pois há muito a tratar. - Virou-se para o filho.
- Marion, sirva uma boa taça de vinho para nossa convidada.
Agria
fez conforme lhe foi pedido. Sentou-se em uma cadeira próxima de onde seu rei
estava. O príncipe trouxe-lhe uma taça de um vinho, o que a deixou um pouco
incomodada.
A
bebida era doce e agradável.
Mas
para ela era amarga.
-
Diga-me, vossa graça. - Agria começou com calma, depois de um longo gole. - O
que aconteceu na Ilhota dos Ventos?
O
príncipe sentou-se também, e o rei fez o mesmo. Levou ambas as mãos à cabeça e
retirou sua coroa, depositando-a numa pequena mesa ao lado de sua cadeira.
-
Havíamos perdido Granlago. - Começou devagar.
Granlago, mas como? A
fortaleza ficava no extremo norte do reino de Arkana, ao pé da cordilheira do
dragão. Sua posição estratégica era de extrema importância nas defesas das
terras do rio, uma vez que suas tropas poderiam pegar pela retaguarda qualquer
inimigo que sitiasse a Ilhota dos Ventos. Além disso, a própria fortaleza era
inexpugnável, nunca antes tendo sido conquistada.
Depois
de uma breve pausa, o rei continuou como se tivesse lido seus pensamentos.
- O
príncipe negro de Arcádia sitiava Granlago há mais de um mês. - Mais um gole de
vinho, Agria não pôde deixar de notar. - Não pude dar a importância necessária
que esse assunto merecia por conta da rebelião que suas forças enfrentavam no
sul. Confesso que o velho Krazt me assustou mais do que eu gostaria de admitir.
-
Não foi sua culpa, pai. Aquele traidor pegou-nos... - Marion começou, mas um
gesto de seu pai o fez com que se calasse.
-
Um rei também erra, meu filho. O que diferencia reis bons de ruins é a
capacidade de reconhecer o erro. - Arturo Benfred III olhou Agria no fundo dos
olhos e disse. - E eu reconheço. Perdi as terras do rio para os nortenhos,
muito mais do que eles a ganharam de mim.
Agria
manteve-se em silêncio, absorta em seus pensamentos. Até que perguntou:
-
Então o cerco do príncipe negro superou Granlago... Lucian de Arcádia realmente
deve ser um oponente terrível.
-
Receio que as habilidades do príncipe negro sejam um tanto superestimadas. -
Continuou o rei. - Granlago poderia aguentar o cerco das tropas negras por
meses, até mesmo por um ano. Tudo o que teríamos de fazer era esperar que
desistissem. Ou até mesmo enviar uma tropa comandada por cavaleiros rúnicos e
quebrar o cerco. Seria fácil.
Agria
continuava sem entender. Se era tão
fácil. Então por quê?
- Subestimei
os Arcadianos. - Continuou o rei Benfred III. - Enquanto Lucian cercava
Granlago pela muralha sudeste, seu primo Rastler de Rasíris levou seus
mercenários pelo lago e entrou furtivamente na cidade pelo norte. Depois abriu
os portões do norte e do leste, para que dez mil gritadores das montanhas
entrassem e saqueassem a cidade.
-
Rastler de Rasíris... - Agria se lembrava do nome, embora pouco mais do que
vagamente. - O filho de lorde Theovan, o Implacável?
O
rei confirmou-lhe com um aceno de cabeça, enquanto levava o cálice mais uma vez
aos lábios.
-
Mas... - Agria pareceu um pouco confusa. – O filho de lorde Theovan havia
deixado o país há anos. Lembro-me de ter ouvido esta história ainda quando
criança. Pensei que estivesse no leste, muito além das fronteiras de Iskarish
através das terras vermelhas.
- E
estava. - Foi o príncipe quem lhe respondeu. - Rastler de Rasíris fugiu para o
leste anos atrás com nada além de um cavalo e uma espada. Quando voltou, liderava
uma pequena tropa mercenária. Lutava por quem lhe pagasse. Por anos guerreou
nas terras vermelhas, levando seus soldados a uma vitória após a outra. Os
bastardos sangrentos se tornaram a companhia mercenária mais bem paga de todos
os tempos.
-
Mercenários. - A guerreira não poderia sentir mais repulsa. Sentia que tinha um
propósito, que morreria para defender seu rei ou seu país. Não lutaria por
dinheiro, dizia a si mesma. - Não sabia que o rei de Arcádia contratava
mercenários.
- E
não contrata. - Benfred III largou o cálice vazio. - Mas o imperador de
Iskarish sim. Os bastardos foram uma das muitas companhias que contratou para
assaltar a Vigia do leste, na tentativa de capturar o herdeiro de Arcádia.
Teria tido sucesso se Rastler não tivesse quebrado o contrato e lutado ao lado
do primo.
Agria
então entendera. Ao salvar o príncipe herdeiro, Rastler de Rasíris comprou sua
entrada em Arcádia novamente. Depois foi o responsável pela queda de Granlago.
- E
quanto ao meu pai? - Perguntou. Ainda não sabia de toda a história.
-
Ele partiu assim que Granlago foi perdida, por ordem minha. - Olhou-a no fundo
dos olhos. - Mas não permiti que levasse homens daqui para combater os
nortenhos. Temia que a senhorita fracassasse contra Mor Krazt. Queria minhas
forças aqui, para defender a capital caso os rebeldes decidissem marchar sobre
nós. Peço humildemente que perdoe-me, senhorita Agria.
No
primeiro momento Agria não respondeu. Virou o rosto para o fogo na lareira,
enquanto algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto. Seu rei havia cometido um
erro, não havia como negar. A falta de confiança doía como se tivesse sido
apunhalada, mas nenhuma dor era maior do que o luto pelo pai.
-
Vossa graça fez o possível e... - Lutou contra as palavras. No fim das contas,
era uma dama. - Tenho certeza de que meu pai morreu defendendo este país. -
Olhou novamente para seu rei. Aquele rei frágil do qual todos falavam estava a
sua frente agora, não aquele poderoso cavaleiro rúnico que parecia reinar
apenas em sua imaginação. Não secou as lágrimas. Deixou-as escorrerem. - Tenho
certeza de que morreu em batalha, com homens e mulheres corajosos ao seu lado.
-
Não houve batalha, minha querida. - Recomeçou o rei, escolhendo sabiamente as
palavras. - Recebi uma mensagem do mago conselheiro da Ilhota, mestre Droclau,
imediatamente depois da morte de seu pai.
-
Uma mensagem... – Agria estendeu a mão e pegou o pedaço de pergaminho que o
príncipe empurrava em suas mãos. Estava amassado, e a tinta borrada em diversos
pontos.
-
Sim. - Marion tomou a palvra, enquanto seu pai ocupava-se em encher o cálice
mais uma vez. - Rastler de Rasíris foi trazido em audiência por sir Janos, o
herdeiro de Granrio. Ofereceu os termos de rendição a lorde Olaf, que se sentiu
inclinado a aceitar, visto que seriam massacrados caso se recusasse. Lorde
Anton, sir Jonas e uma dúzia de senhores menores nada fizeram para impedir. -
Fez uma pausa. - Seu pai foi o único que não se dobrou aos arcadianos, e quando
tentou reagir Rastler de Rasíris o matou. Isso fez com que os senhores do rio
se curvassem.
Era
difícil de Acreditar. Lorde Ricardus havia sido um cavaleiro rúnico, um dos
melhores que Agria conhecera. Que perícia
teria Rastler de Rasíris para derrotá-lo?
-
Sei que é difícil, senhorita, mas preciso que seja forte. - O rei recomeçou. -
Enviei Julius para o sul para terminar o trabalho que começou com Mor Krazt.
Fizera um ótimo trabalho. Mas agora preciso da senhorita em casa. Volte para
Velhatorre, conforte sua mãe e seus irmãos. É a filha mais velha e, portanto, a
herdeira.
Agria
ergueu os olhos do pergaminho, que fitava desde que Marion lhe explicara o que
acontecera. O rei continuou:
-
Levará com você uma força de cinco mil homens, além do exército de Velhatorre
que estava com a senhorita no sul. Darei também trinta cavaleiros rúnicos. Marion
a acompanhará, ele tem muito a aprender, mas está no caminho para se tornar um
grande guerreiro. - Bebeu um longo gole, esvaziando mais uma vez o cálice. -
Reúna o restante das forças de seu pai, e vamos dar o troco aos nortenhos.
-
Sim, vossa graça. - Agria pôs-se de joelhos. - Como desejar. Partirei assim que
as tropas estiverem prontas.
Mas
sua cabeça estava longe. Seus pensamentos espreitavam por becos escuros dentro
de suas mente, afundando-se dentro das trevas que agora alimentavam todo o ódio
que jamais sentira.
Preciso matar Rastler de Rasíris.
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